
O que uma funerária faz em BH
A Madrugada em que o Google não Tinha Respostas, só Números
Eram 3:17 da manhã. Eu sei a hora exata porque o brilho vermelho do rádio-relógio foi a primeira coisa que meus olhos focaram quando o telefone rasgou o silêncio do quarto. Um som agudo, insistente, que não pertence à madrugada. Meu coração já sabia. O corpo acorda depois, mas o coração sabe antes. Era minha prima, a voz embargada, quebrada. “Tia Lúcia se foi”. E o mundo parou. Fiquei sentada na beirada da cama, o ar gelado do ar-condicionado batendo nas minhas costas, o edredom um amontoado inútil no chão. Meu marido, Beto, sentou ao meu lado, a mão dele grande e quente na minha nuca. Mas o frio vinha de dentro.
Depois do choque, que dura uns minutos que parecem uma eternidade, vem o “e agora?”. Tia Lúcia morava sozinha. O corpo estava lá, no apartamento dela no Anchieta. Alguém precisava… resolver. E esse “alguém”, naquela madrugada de terça-feira, éramos nós. Peguei o celular, a tela explodindo uma luz azul e fria no escuro. Meus dedos tremiam. O que se digita numa hora dessas? A mente fica em branco. “funerária bh 24h”. A busca automática completou. Parecia tão banal, tão funcional para um momento que era tudo, menos isso.
A tela se encheu de anúncios. Links patrocinados com frases prontas: “Atendimento Humanizado”, “Suporte Completo”, “Acolhemos sua Dor”. Palavras vazias. Eu não queria acolhimento de uma empresa, eu queria minha tia de volta. Mas eu precisava de um telefone. Um simples, maldito, número de telefone. Cliquei no primeiro link. Um site bonito, tons pastéis, uma foto de uma senhora de cabelos brancos sorrindo para um horizonte ensolarado. Senti uma raiva. Que encenação é essa? Cadê o telefone? Rola a página, passa pelos “nossos valores”, “nossa história”… e nada. Só um formulário de “fale conosco”. Fale conosco? Eu preciso falar agora!
O Desespero de um Número que não Atende
Fechei a página, a respiração curta. Tentei de novo. “funerária de plantão bh”. Os resultados eram quase os mesmos. Mais fotos de paz, de famílias se abraçando em jardins verdejantes. Senti o cheiro do carpete velho do quarto, um cheiro de poeira e tempo. Meu estômago revirava. Beto, vendo meu desespero, pegou o celular dele. “Calma, amor. Vamos achar”. Ele foi mais direto. “telefone funerária bh”. E ali, no meio dos links, apareceram os números. Vários deles. Um alívio que durou pouco.
O primeiro que ligamos, chamou, chamou e caiu na caixa postal. “No momento não podemos atender, deixe seu recado”. Um recado? Meu Deus, que tipo de funerária 24h tem caixa postal? O segundo, atendeu. Uma voz sonolenta, arrastada. “Pois não?”. Expliquei a situação, a voz falhando. O homem do outro lado bocejava. Eu ouvia o bocejo dele. Ele me passou valores como se estivesse ditando uma lista de compras. Sem uma palavra de conforto, sem um “sinto muito”. Apenas números. Desliguei. Não podia ser com ele. Não podia entregar minha tia, a tia que me ensinou a fazer bolo de fubá, nas mãos daquele descaso.
A reação da minha prima, quando contei, foi de um choro cansado. “Qualquer um, Gabi. Pega qualquer um, a gente só precisa resolver”. Mas não era qualquer um. Era a despedida dela. Meu erro foi quase ter cedido a esse desespero. A dica que eu daria para mim mesma, naquela noite, é: respire. Mesmo quando parece impossível, respire. A primeira opção, a mais fácil, quase nunca é a melhor.
A Voz que Acalmou a Noite
Finalmente, na terceira tentativa, uma voz calma atendeu. Firme, mas serena. “Funerária Acalanto, boa noite. Em que posso ajudar?”. Eu desabei a chorar. E o homem do outro lado da linha ficou em silêncio, me deixando chorar. Ele não apressou, não interrompeu. Quando consegui falar, ele me guiou. “Primeiro, vamos cuidar da remoção. Me passe o endereço, uma equipe discreta já está a caminho. Depois, com calma, falamos sobre os próximos passos”.
Ele não vendeu nada. Ele ofereceu um caminho. E era tudo que eu precisava. A equipe que chegou era exatamente como ele disse: discreta. Dois homens de roupa escura, silenciosos, respeitosos. Ver o corpo da minha tia sendo levado foi a imagem mais dura da minha vida. O cheiro do perfume dela ainda estava no ar do apartamento, uma presença fantasma que doía. Mas em meio a toda a dor, havia um fiapo de gratidão por ter encontrado uma voz humana do outro lado do abismo digital. Aquela busca frenética por um número de telefone na madrugada me ensinou que, no fim, mesmo na era dos cliques e dos sites, o que a gente procura é o humano.