O que uma funerária faz em BH

O Caminho Invisível: Quando a Despedida Começa na Porta de Casa

Existe uma logística da morte, uma coreografia silenciosa e sombria que a maioria de nós, felizmente, desconhece. Eu fui apresentada a ela numa tarde quente e abafada de novembro, quando meu sogro, seu Osvaldo, nos deixou. Ele faleceu em casa, na poltrona onde assistia ao jogo do Galo, cercado por seus porta-retratos e suas memórias. Após o médico atestar o óbito, veio a frase que ninguém está preparado para ouvir: “Agora, vocês precisam acionar o serviço de remoção”. E um novo tipo de luto se instalou: o luto prático.

Discar para a funerária que já tínhamos, por sorte, escolhido no plano que fizemos, foi a parte fácil. A parte difícil foi esperar. A espera pela “remoção do corpo”, como eles chamam tecnicamente, é um tempo suspenso. A vida da casa para. O ar fica denso, pesado. A gente falava baixo, como se ele estivesse apenas dormindo na poltrona. Minha sogra, em estado de choque, passava a mão nos cabelos dele, arrumando um fio teimoso. Eu sentia o cheiro do café que ela tinha passado mais cedo, um aroma que sempre significou conforto e que, naquele instante, era a trilha sonora de uma despedida.

A principal preocupação que me corroía era: como seria? A imagem que me vinha à cabeça era de algo frio, clínico, talvez até um pouco violento. Moramos num prédio movimentado no Sion. Como eles o levariam sem transformar nosso luto num espetáculo para os vizinhos? Essa era a minha maior angústia. O medo da exposição, de ver a dignidade do homem que foi meu sogro reduzida a um procedimento logístico na frente de todos.

 

O Balé Silencioso no Corredor

 

A equipe chegou. Dois homens. Eles não tocaram a campainha. Ligaram para o meu celular. “Senhora, estamos no hall. Podemos subir?”. Essa delicadeza, esse pequeno detalhe, mudou tudo. Subiram pelo elevador de serviço, não para esconder, mas por respeito ao espaço. Entraram em casa em silêncio. Cumprimentaram a todos com um aceno de cabeça. Não eram homens de preto, clichês de filme. Eram apenas dois profissionais fazendo um trabalho terrivelmente difícil.

Eles trouxeram uma maca especial, que não parecia uma maca hospitalar. Era mais como uma concha, algo que envolvia. O erro que eu cometi foi tentar ajudar. “Deixa que eu pego os braços”, eu disse, num impulso de não deixá-lo ser tratado como um objeto. Um deles, com uma gentileza enorme, tocou meu ombro e disse: “Pode deixar, senhora. A gente sabe como fazer sem machucar”. E eu entendi. Aquele era o ofício deles. Um ofício triste, mas necessário.

O processo foi rápido, eficiente e, acima de tudo, digno. Eles o cobriram com um lençol azul-escuro. A imagem foi forte, mas não foi degradante. A dica que eu daria é: confie nos profissionais, mas não saia de perto. Fique no ambiente. Sua presença ali, mesmo em silêncio, é uma forma de velar, de garantir que o respeito permaneça até o último segundo. A presença da família humaniza o inevitável.

 

O Último Trajeto Começa em Casa

 

A reação dos meus filhos, que chegaram pouco depois, foi de um silêncio respeitoso. Eles não viram a remoção em si, e sou grata por isso. Mas sentiram a mudança na atmosfera da casa. O vazio na poltrona era um grito. O corredor do prédio, por onde eles passaram, parecia mais longo, mais escuro. Meus vizinhos, para minha surpresa, foram de uma discrição ímpar. Ninguém abriu a porta para espiar. Talvez a dor seja uma linguagem universal que não precisa de palavras, apenas de respeito.

Quando eles saíram, o apartamento ficou imenso, oco. O cheiro de café tinha sido substituído por um cheiro de nada, de ausência. Aquele procedimento, a “remoção”, marcou o início físico do adeus. Foi a transição entre ter a pessoa ali, inerte, e ter apenas a memória dela. É uma etapa brutalmente necessária. E ter passado por ela com uma equipe que entendia o peso de cada gesto, que transformou um procedimento técnico num balé silencioso de respeito, fez toda a diferença. Não diminuiu a dor, nada diminui. Mas não adicionou trauma. E, no fim das contas, isso é uma benção.