
Como escolher um agente funerário
Planejando o Adeus: A Apólice que Virou Assunto de Família
A primeira vez que a ideia de um plano funerário familiar atravessou a soleira da nossa casa, ela não bateu na porta. Entrou de rompante, trazida pelo caos da vizinha do 302, a dona Célia. Vi da janela do meu apartamento aqui no Buritis a movimentação. Os filhos dela, já homens feitos, completamente perdidos. Correndo de um lado para o outro no estacionamento, discutindo aos berros no celular sobre translado, caixão, cemitério. Um deles, o mais novo, chorava sentado no meio-fio, a cabeça entre as mãos. E eu só conseguia pensar: “Meu Deus, que desespero”.
Aquela cena ficou grudada na minha retina. O cheiro do café que eu passava na hora parecia ter perdido o aroma, substituído por um odor de urgência, de desamparo. À noite, toquei no assunto com o Ricardo, meu marido. Ele, com o prato de feijão tropeiro na mão, quase engasgou. “Uai, vira essa boca pra lá, mulher! Que conversa é essa?”. A reação dele foi exatamente a que eu esperava. O tabu. Aquele assunto pesado, empoeirado, que a gente joga para debaixo do tapete da sala e finge que não existe. Mas a imagem dos filhos da dona Célia não me saía da cabeça. Não era sobre morrer. Era sobre o que acontece logo depois. Era sobre cuidado.
Insisti. Não com números ou argumentos de venda, mas com a sensação. “Imagina os meninos”, eu disse, “ter que decidir tudo aquilo, naquele estado?”. Ele ficou quieto. A gente tem dois filhos, o Lucas e a Clara. A ideia de deixar pra eles um abacaxi burocrático no pior dia da vida deles… aquilo finalmente fez sentido. Decidimos, então, mergulhar nesse universo. E, vou te dizer, foi uma experiência. Comecei minha pesquisa tarde da noite, quando a casa estava em silêncio. “Plano funerário familiar BH”, “melhor plano funerário”, “quanto custa um funeral”. Cada clique me dava um frio na espinha. Os sites eram todos muito… limpos. Polidos demais para um assunto tão visceral. Fotos de famílias sorrindo, um sol poente. Uma tentativa quase desesperada de adoçar a pílula.
Entre Cláusulas e Lembranças
O passo seguinte foi ligar para algumas empresas. Foi aí que os desafios começaram de verdade. A primeira vendedora que me atendeu parecia vender um pacote de férias. Uma alegria que não cabia no tema. “Nossos planos são completíssimos, com o melhor atendimento humanizado!”. A palavra “humanizado” era repetida como um mantra, mas a voz dela era de telemarketing. Desliguei sentindo um incômodo. Outro vendedor foi o oposto. Solene, grave, falava em sussurros, como se já estivesse num velório. Aquilo me deu uma angústia. Eu não queria comprar tristeza, queria comprar tranquilidade.
O erro que quase cometemos foi no detalhe. Achamos um plano com um valor que parecia justo. Já estávamos quase fechando quando, por um instinto, perguntei: “Mas a cremação está incluída para todos do grupo familiar?”. Silêncio do outro lado da linha. “Ah, não. A cremação é um adicional por pessoa”. Opa. Eu sempre disse que queria ser cremada. Ricardo também prefere. Meus pais, que pensamos em incluir, são mais tradicionais, preferem o sepultamento. O plano engessado não servia. Era uma daquelas pegadinhas em letras miúdas. A dica prática que eu deixo, de coração: pergunte tudo. Seja o chato. Questione sobre translado entre cidades, sobre o tipo de urna, sobre as taxas do cemitério que nunca estão inclusas. Faça uma lista de tudo que é importante para a sua família e cheque item por item. Não aceite o “pacote padrão”.
A reação da minha mãe, quando contei, foi a pior. “Credo, minha filha! Tá chamando coisa ruim!”. Tentei explicar que era o contrário, que era um ato de organização, de amor. Ela, benzendo-se, demorou a aceitar. Meu pai, mais pragmático, ouviu tudo calado e no final só disse: “É, pensando bem, faz sentido. Não quero dar trabalho”. A conversa com eles foi delicada, um caminhar sobre ovos, misturando a praticidade da decisão com o respeito às suas crenças e medos. Não foi uma compra, foi uma negociação de afetos, de medos e, principalmente, de futuros.
A Paz que Mora no Futuro
No fim, encontramos uma empresa que nos permitiu personalizar o plano. Um consultor veio até nossa casa. Um senhor calmo, de fala mansa, que tirou um bloquinho e anotou nossas vontades. Sem pressa. Ele sentiu o clima, explicou as diferenças, falou sobre a importância de comunicar a decisão aos filhos. A presença dele, a forma como ele tratou o assunto com normalidade, como se estivesse falando sobre um seguro de carro, ajudou a dissipar a névoa pesada que pairava sobre a nossa mesa de jantar.
Quando assinamos o contrato, senti uma coisa que não esperava: alívio. Um peso físico, real, saiu dos meus ombros. Ricardo segurou minha mão e sorriu, um sorriso de cúmplice. “Pronto. Assunto resolvido”. Guardei a apólice numa pasta no escritório. Não é um documento que a gente goste de ver, claro. Mas saber que ele está ali… é diferente. Aquele pedaço de papel representa a tranquilidade de saber que, na hora da dor, meus filhos não estarão ao telefone, aos berros, discutindo sobre burocracia. Estarão juntos, se abraçando, vivendo o luto que precisam viver. Sem o peso do mundo prático nas costas.
De vez em quando, vejo o filho mais novo da dona Célia no elevador. Ele parece mais velho, o olhar cansado. Tenho vontade de dizer que sinto muito, que entendo. Mas fico quieta. Apenas sorrio. E, ao entrar em casa, sinto o cheiro do meu café, agora com o aroma de sempre. O aroma de lar, de cuidado. E de uma paz de espírito que, sinceramente, não tem preço. É um trem doido, né? Pensar que a tranquilidade pode vir em forma de uma apólice que a gente torce para nunca usar. Mas vem.